viernes, 15 de febrero de 2013

Dossiers
ISSN 2014-1475
Cidadania comunicativa e práticas midiáticas de migrantes latino-americanos

Por Thales Henrique Nunes Pimenta (*). Resenha da obra de COGO, Denise Maria. Latino-americanos em diáspora: usos de mídias e cidadania das migrações transnacionais. Rio de Janeiro: Tríbia, 2012, 186 p.

Nas últimas duas décadas as pesquisas científicas do campo comunicacional têm executado grandes movimentos de investigação sistemática dos remodelamentos sociais e políticos vividos na América Latina – na chave da relação de agentes sociais com os meios de comunicação e das suas condições cidadãs. A terminologia conhecida por comunicação cidadã, portanto, que é escassamente utilizada entre 1970 e 1990 nos espaços latino-americanos para nominar a comunicação popular e alternativa tanto no contexto dos movimentos sociais que a praticavam quanto no pensamento comunicacional que se propunha a configurá-la como um objeto de pesquisa científica (Cogo, 2012, p. 25), situa-nos diante de um desafio epistemológico em que a comunicação e a cidadania precisam ser articuladas, já que os indivíduos também se pensam sujeitos comunicantes por meio de práticas midiáticas, que incidem na constituição de sua cidadania – entendida como exercício coletivo do direito à conquista de direitos. Por conseguinte, passa-se a avistar no terreno das ciências da comunicação o conceito de cidadania comunicativa, que se constitui uma prática social importante, por exemplo, no âmbito das migrações transnacionais de indivíduos latino-americanos.

O livro intitulado de “Latino-americanos em diáspora: usos de mídias e cidadania das migrações transnacionais” traz ao campo das Ciências da Comunicação os resultados de uma investigação realizada entre 2007 e 2009 pelo grupo de pesquisa de Mídia, Cultura e Cidadania do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação (PPGCC) da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), no Brasil, sob a coordenação da pesquisadora Denise Cogo. A obra nos apresenta um mapeamento exploratório de dez práticas midiáticas desenvolvidas por migrantes latino-americanos nos contextos urbanos de Buenos Aires, São Paulo, Lisboa, Porto Alegre e Barcelona através de um denso percurso descritivo-analítico de três dimensões que seriam configurantes das experiências de cidadania comunicativa desses indivíduos e de seus processos de mobilização coletiva.

A autora analisa a reafirmação e a articulação identitárias da diáspora latino-americana e as suas decorrências em alguns processos de cidadania intercultural dos migrantes, o engendramento de um complexo discursivo alternativo e contra-hegemônico de construção midiática das migrações transnacionais e a inserção das práticas midiáticas em suas estratégias de luta e mobilização no cenário das políticas migratórias nacionais e supranacionais, a exemplo das políticas referentes a uma cidadania universal (Ibid., p. 24). Por meio de seu itinerário teórico, o livro aqui pensado se centra nos eixos conceituais da comunicação midiática, das migrações transnacionais, da diáspora latino-americana e da cidadania. Através de uma perspectiva crítico-epistemológica, os movimentos teóricos que ele arquiteta parecem se configurar como uma rede conceitual que baliza a construção de um trajeto epistêmico por onde se constroem os seus recortes empíricos.

Cogo também nos coloca frente a um elenco de possibilidades de experimentação oportunizadas pela configuração de tecnologias comunicacionais como espaços relevantes da construção/circulação de agendas e imaginários sociais relativos às disputas de cidadania, em instâncias socioeconômicas, políticas e culturais. Aborda essa perspectiva fazendo referência à ascensão das micropolíticas de empoderamento dos indivíduos migrantes para além dos estados-nação, que propiciam maneiras de apropriação e gestão comunicacionais caracterizadas, em muitos contextos, pela sua descentralidade (Ibid., p. 30). Logo, os agentes sociais constroem as suas identidades em um processo dialógico de identificações culturais e éticas por meio de negociações, resoluções de conflitos, intercâmbios e resistências a mecanismos de exclusão sistêmica dos sujeitos na globalização. Sentimentos coletivos se gestam frente a dificuldades, desafios e possibilidades de realização tanto emocional quanto política da condição cidadã dos indivíduos.

As práticas midiáticas atribuem contornos específicos às redes migratórias, além de pontuarem as relações do transnacionalismo migrante com a comunicação pelo avanço intenso dos movimentos migratórios em instância internacional – o que possibilita tanto um aprofundamento dos contatos, intercâmbios e conflitos culturais quanto uma emergência de outras duas importantes modalidades de cidadania na agenda social da contemporaneidade: as cidadanias intercultural e universal. Então, é estabelecido um panorama importante na pesquisa de Denise Cogo em que podem ser localizados outros processos de constituição e/ou expressão dessa cidadania comunicativa, para além das práticas midiáticas e objetos empíricos que ela já sistematiza. Pode-se identificar um vasto conjunto de elementos contextualizadores que nos permitem categorizar os processos de produção e consumo midiáticos locais dos migrantes latino-americanos vinculados a dinâmicas e fluxos internacionais ou supranacionais. Eles nos apresentam as relações transnacionais que proporcionam uma glocalização dos meios comunicacionais dirigidos por indivíduos migrantes em contextos específicos porque, na sua atividade integrada, acontece uma consolidação das redes de colaboração e competências entre esses sujeitos (Ibid., p. 45-46).

A postura metodológica cosmopolita, que configura uma interseção de variados territórios materiais e simbólicos conformados à experiência humana, ultrapassa as discussões epistêmicas da utilização catequista dos métodos e de suas operacionalizações para também considerar a ecologia dos saberes de migrantes pesquisados como uma dimensão configuradora dos procedimentos metodológicos adotados. Cogo estabelece uma perspectiva multimedotológica particular, mas ao mesmo tempo aberta às mudanças constantes da prática investigativa, que assume os objetos da pesquisa científica como construtos prioritariamente atualizados pelos objetos empíricos que os definem, pois o estudo sistemático de práticas midiáticas no panorama das migrações transnacionais demanda, de fato, uma vigilância epistemológica sobre os seus movimentos multidimensionais e efêmeros de apropriação e gestão comunicacionais.

Utilizam-se a observação, a entrevista em profundidade e a pesquisa documental em processos de atravessamento para um movimento extenso de pesquisa sistemática dos objetos empíricos tidos nas dez experiências comunicacionais, noventa espaços midiáticos, dezenove aspectos materiais e dez entrevistas de gestores e produtores de mídias. Produzidas entre os anos de 1997 e 2009, as mídias mapeadas pela pesquisa abrangem modalidades diversas: portais, sites, jornais impressos e online, boletins digitais e impressos, resenhas impressas, folders, blogues e revistas tanto online quanto impressas. Os procedimentos iniciais de mapeamento e análise das materialidades desse universo multimidiático descortinam conteúdos produzidos em torno de muitos interesses que se ligam, no entanto, através de alguns eixos bastante comuns – temáticos, ideológicos, culturais etc. Os modos de posicionamento nesse campo tão vasto de mobilizações sociais e ações coletivas das migrações transnacionais se compreendem em organizações de apoio às migrações representadas por entidades confessionais vinculadas à Igreja Católica, associações de migrantes, grupos (redes informais) de migrantes, indivíduos migrantes e empresas jornalísticas de caráter privado. Diante desses aspectos empíricos, os movimentos metodológicos da pesquisa são pensados de modo a contemplar também as relações hierárquicas e assimétricas dos sujeitos, a sua historicidade e outras mediações que são essenciais na organização de suas práticas midiáticas, percebendo que essas iniciativas coletivas e mesmo individuais geram processos que, através de grupos, organizações migratórias ou migrantes individualmente, objetivam organizar, articular, mobilizar e visibilizar as suas demandas e agendas de luta, conferindo um sentido aos processos migratórios que, de algum modo, muito se assemelha ao caráter de movimentos sociais.

Ainda que os movimentos diaspóricos contemporâneos de sujeitos latino-americanos, a rigor, sejam um fenômeno social diferente das migrações históricas que fundam os nossos tecidos socioculturais, visto que sua condição é estruturalmente múltipla, a pesquisa comunicacional tem de lançar olhares sobre suas estruturas atípicas e matrizes midiáticas – que também são processos sistemáticos. Nada é tão acêntrico que não possa ser investigado, mesmo que os limites temporais impostos pelas dinâmicas e velocidades dos atuais fenômenos migratórios imponham obstáculos epistemológicos aos métodos e técnicas de um campo comunicacional que ainda está tanto assumindo quanto sistematizando a sua mesticidade. As práticas midiáticas, embora sejam fragmentadas, concorrem para a estruturação dos espaços coletivos de ação transnacional e articulação da diáspora migratória globalmente dispersa a partir da combinação de tecnologias, suportes e formatos em que se misturam os processos de novas e clássicas práticas dos movimentos sociais às experiências ciberativistas. Os fenômenos sociais que são acima referidos constituem, ao final de seu estudo, um espaço epistemológico em que podemos localizar uma configuração específica da cidadania comunicativa – que também surge em pesquisas de diferentes eixos teóricos, conceituais e/ou metodológicos sobre outros processos midiáticos – em um panorama de interesses políticos interculturais e universalistas.

O livro denominado de “Latino-americanos em diáspora: usos de mídias e cidadania das migrações transnacionais”, portanto, avança discussões teórico-metodológicas levantadas noutras publicações da autora em torno dos conceitos de interculturalidade, cidadania e transnacionalismo migrante, que se configuram em expressivos processos comunicacionais e midiáticos. A obra ademais nos coloca diante de contribuições teórico-metodológicas relevantes para a formação de algumas outras competências críticas e investigativas necessárias à pesquisa científica nestes tempos rápidos e fugidios.



(*) Thales Henrique Nunes Pimenta: Jornalista e mestrando do Programa de Pós-Graduação do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação (PPGCC) da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), Rio Grande do Sul, Brasil.

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